Na contramão da ciência, Trump culpa Tylenol por autismo

Na contramão da ciência, Trump culpa Tylenol por autismo
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Presidente dos EUA acredita ter descoberto origem da suposta “epidemia de autismo”. Pesquisadores rebatem alegação e afirmam não haver evidências suficientes que estabeleçam uma relação entre paracetamol e o transtorno.

Aumento de casos de autismo identificados nos EUA pode estar relacionado à melhor notificação do transtorno

Embora o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, afirme ter resolvido o mistério sobre a origem do Transtorno do Espectro Autista (TEA), a ciência está longe de ter uma resposta simples e conclusiva para essa questão.

Sob pressão do secretário de Saúde Robert F. Kennedy Jr., o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS) do país encomendou em abril um estudo para determinar até setembro o que teria causado a suposta “epidemia de autismo” no país.

O número de diagnósticos de autismo nos EUA vem aumentando há décadas. Cerca de 1 em cada 36 crianças foi identificada com transtornos do espectro autista em 2020 – um salto em relação a 2000, quando a taxa era de 1 a cada 150 crianças, de acordo com dados dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos EUA.

Nesta segunda-feira (23/09), Trump disse que o paracetamol seria o suposto causador de autismo. “Recomendamos fortemente que as mulheres limitem o uso de Tylenol [marca comercial de paracetamol] durante a gravidez, a menos que seja clinicamente necessário”, alegou durante uma entrevista coletiva na Casa Branca.

Tylenol é um dos analgésicos e antipiréticos mais vendidos nos EUA

Trump também disse que existem “rumores” de que em Cuba “virtualmente não há autismo”, segundo ele, porque para consumir Tylenol é preciso ter dinheiro. “Há outras partes do mundo que não têm Tylenol e não têm autismo. Isso já diz muito”, acrescentou.

O governo americano ordenou que o medicamento seja rotulado em centros de venda pelo risco que pode acarretar.

Nos Estados Unidos, Tylenol é um dos analgésicos e antipiréticos de venda livre mais utilizados, com milhões de consumidores que o escolhem anualmente para aliviar dor e febre. A marca pertence à Kenvue, empresa desmembrada da Johnson & Johnson. A fabricante afirmou estar preocupada com o risco que as declarações de Trump representam para a saúde de gestantes.

Sem base científica

A grande maioria da comunidade científica nega que haja evidências suficientes que estabeleçam uma relação entre o paracetamol e o autismo. Durante o anúncio de Trump, o Colégio Americano de Obstetras e Ginecologistas divulgou um comunicado no qual garantiu que o paracetamol é seguro e que as doenças que são tratadas durante a gravidez “são muito mais perigosas do que qualquer risco teórico e podem causar graves problemas de saúde”.

Já a Autism Science Foundation negou que as evidências existentes provem esse vínculo entre autismo e paracetamol.

Segundo Christine M. Freitag, diretora do Departamento de Psiquiatria Infantil e Adolescente, Psicossomática e Psicoterapia do Hospital Universitário de Frankfurt, estudos abrangentes não demostram efeito causal entre o uso do medicamento na gravidez e o TEA, há apenas um aumento mínimo no risco.

Freitag destacou que há um risco poligênico para o desenvolvimento de transtornos do neurodesenvolvimento, como o transtorno do espectro autista, o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), deficiência intelectual e distúrbios da fala. Assim, não há um medicamento ou gene específico que causa esses transtornos, mas sim centenas e milhares de variantes genéticas. Quando essas variantes se acumulam, o risco aumenta.

O que muitos não sabem sobre o autismo

Pesquisadores também já apontaram que poluição ambiental, como microplásticos e partículas de poeira poluentes, podem aumentar o risco de autismo.

Em abril, o neurocientista cognitivo e especialista em autismo da Universidade de Oxford e da University College London, Geoff Bird, defendeu que “a ideia de que podemos descobrir as causas repentinamente até setembro não é realista.”

O que causa o autismo?

Segundo a literatura médica, o transtorno do espectro autista decorre de alterações no desenvolvimento do cérebro durante o início da vida. De acordo com Bird, é consenso que cerca de 80% dos casos de autismo podem estar ligados a mutações genéticas hereditárias, ainda que a causa exata do transtorno ainda não foi exaustivamente identificada.

Os cientistas já identificaram que mutações em determinados genes, como o MECP2, afetam a estrutura e conectividade dos neurônios, mas a evidência de que estas alterações estejam diretamente ligadas ao autismo não é clara.

Os cientistas também estão investigando se fatores como poluentes, alterações no eixo intestino-cérebro ou no sistema imunológico podem ter um efeito direto sobre o neurodesenvolvimento e o autismo.

No entanto, Bird defende que as evidências sobre essas teorias “não são convincentes”. “Sem dúvida, os poluentes fazem mal, mas eu ficaria surpreso se eles estivessem aumentando as taxas de autismo”, disse ele.

Conscientização sobre o autismo e qualidade do diagnóstico

“O diagnóstico do autismo sempre foi o maior desafio na pesquisa, porque não temos um marcador biológico do espectro do transtorno autista”, disse Bird à DW. Ou seja, não é possível diagnosticar um paciente apenas pesquisando alterações celulares e moleculares, por exemplo.

Segundo o neurologista, porém, apesar dos desafios, a evolução das definições clínicas e sociais desde que o autismo foi descrito pela primeira vez há 80 anos ajuda a explicar o aumento dos diagnósticos nos EUA.

“Agora é comum diagnosticar pessoas com sinais muito mais sutis, o que explica parte do aumento da prevalência”, disse Bird.

As mudanças nos métodos de triagem também ajudaram os especialistas a detectar sinais de autismo em meninas com mais frequência.

Robert F. Kennedy Jr. já criticou vacinas e prometeu estudar sua “eficácia e segurança”

“O autismo era definido principalmente pela forma como se apresentava em meninos, e os diagnósticos de meninas se ajustavam a isso. Agora estamos expandindo os critérios para levar em conta as representações femininas”, disse Bird. “A consequência natural é o aumento da prevalência do autismo.”

O movimento da neurodiversidade também contribuiu para critérios diagnósticos mais amplos e precoces. Os movimentos de conscientização sobre o autismo ajudaram as pessoas a entender como suas próprias experiências podem não ser neurotípicas.

“A conscientização provavelmente aumentou o número de pessoas que procuram uma avaliação e um diagnóstico e, portanto, podem se sentir aliviadas quando encontram respostas e possíveis próximos passos”, disse Suzy Yardley, CEO da ONG Child Autism UK.

Vacinas não causam autismo

A alegação de que as vacinas estão por trás do aumento das taxas de autismo também tem sido repetidamente refutada.

Nas últimas duas décadas, cientistas realizaram estudos rigorosos e em larga escala para determinar se algum aspecto da vacinação poderia causar autismo. Nenhum deles mostrou qualquer ligação entre o desenvolvimento do espectro autista e os imunizantes administrados durante a gravidez ou após o nascimento.

“Não foi encontrada nenhuma ligação entre o autismo e as vacinas, incluindo aquelas que contêm timerosal, um composto à base de mercúrio”, afirma o Instituto Nacional de Saúde (NIH) dos EUA.

A falsa alegação de que as vacinas causam autismo se baseia em um estudo publicado em 1998 que sugeria uma ligação entre a vacina contra sarampo, caxumba e rubéola, a vacina tríplice viral (MMR) e problemas no desenvolvimento do cérebro.

Posteriormente, pares identificaram que o estudo continha erros graves e ele foi retirado.

No mês passado, o CDC iniciou um estudo para identificar possíveis ligações entre as vacinas e o autismo, apesar de pesquisas anteriores da própria agência indicarem que esta ligação não existe.

Em 2022, Kennedy chegou a dizer que “nenhuma vacina é segura e efetiva”, mas passou a recusar o título de “ativista antivacina” ao ser indicado para o cargo na Saúde.

O secretário também minimizou um surto de sarampo no Texas que infectou 500 pessoas e matou duas crianças não vacinadas neste ano.

“Golpe publicitário”

Defensores da comunidade do autismo receberam o anúncio de RFK Jr. com ceticismo. A Associação Nacional do Autismo do Reino Unido chamou a afirmação de Kennedy de um “golpe publicitário de notícias falsas”.

“Estamos surpresos com a maneira insensível e anticientífica com que Trump e RFK Jr. falam sobre as pessoas autistas”, disse Tim Nicholls, diretor assistente de política, pesquisa e estratégia da Associação Nacional do Autismo do Reino Unido.

“Não seria melhor se eles pudessem empregar seus recursos financeiros para melhorar a vida das pessoas autistas e de suas famílias, e melhorar a compreensão da sociedade sobre o autismo?”

Bird acredita que “tensões” na maneira como as pessoas pensam e pesquisam o autismo são comuns, principalmente quando se trata da ideia de reduzi-lo ou eliminá-lo. Alguns grupos argumentam que o autismo não é uma doença e “portanto, não há nada para ser ‘curado'”, disse Yardley, da Child Autism UK, à DW.

Mas outros entendem que aqueles que defendem que o autismo não é um distúrbio “superam as vozes de um grande número de pessoas com autismo que sentem que suas vidas foram afetadas negativamente”, defende Bird.

Fonte:    www.dw.com.br


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