HBO Max revisita o histórico assassinato que teve impacto social e jurídico. Caso ajudou a derrubar a tese da legítima defesa da honra.
A HBO Max estreou Ângela Diniz: Assassinada e Condenada, série que resgata o feminicídio da socialite mineira morta em 1976 pelo então companheiro Doca Street. O episódio chocou o país e impulsionou uma das maiores discussões públicas sobre violência contra a mulher no Brasil.
A produção se baseia no podcast Praia dos Ossos, da Rádio Novelo, e tem direção de Andrucha Waddington. “Apesar de ter acontecido há 49 anos, é uma história contemporânea. É uma boa oportunidade da gente, pelo entretenimento, trazer um debate importante para a sociedade”, afirma o diretor ao Globo.
Com seis episódios, a série opta por um recorte que acompanha a trajetória de Ângela da separação do marido, Milton Villas Boas, até seu assassinato — decisão tomada, segundo Waddington, para preservar a família e manter o foco na história da vítima. “A história não era sobre os filhos dela, então a gente quis preservar a família e se ater a contar a história da Ângela, o que aconteceu com ela e o circo que foi formado em torno dela”.
A força e a complexidade de Ângela
Interpretada por Marjorie Estiano, Ângela aparece na série como uma mulher multifacetada, sensual, independente e frequentemente punida socialmente por desafiar padrões de gênero. “Esse lugar multifacetado foi composto no roteiro pelas escolhas das cenas, das relações e dos personagens que foram retratados com ela”, descreve Estiano.
O material evidencia como sua autonomia — rara para os padrões dos anos 1970 — a tornava alvo de perseguições e julgamentos, inclusive dentro do sistema de Justiça, que posteriormente acolheu a tese machista da “legítima defesa da honra”, usada pela defesa de Doca para acusá-la de ser responsável por própria morte.
O crime que impulsionou um movimento
Em 30 de dezembro de 1976, Ângela foi assassinada com quatro tiros na casa de praia em Búzios. Doca Street, seu então namorado, confessou o crime, mas sua defesa transformou os julgamentos em um espetáculo público. No primeiro júri, em 1979, o advogado Evandro Lins e Silva apresentou a tese da “legítima defesa da honra”, argumento machista segundo o qual Doca teria reagido a provocações e humilhações da vítima. A estratégia fez com que ele fosse condenado a apenas dois anos de prisão em regime aberto.
Diante disso, a reação popular foi imediata. Movimentos feministas denunciaram a culpabilização da vítima e organizaram uma campanha sem precedentes, que veio a público sob o lema “Quem Ama Não Mata”, hoje lembrado como um dos marcos da luta pelos direitos das mulheres no Brasil. A mobilização pressionou o Ministério Público e a Justiça a revisarem o caso. No segundo julgamento, em 1981, Doca Street recebeu pena de 15 anos, mas que foi reduzida tempos depois.
A série também recupera o impacto político e cultural desse episódio: ao lançar luz sobre o modo como a Justiça, a imprensa e a sociedade trataram Ângela, ela expõe mecanismos de violência institucional que continuam presentes. A permanência desse cenário é evidente: mesmo após a derrubada da tese da legítima defesa da honra pelo STF, quatro mulheres são assassinadas por dia no Brasil em contextos de violência doméstica, segundo o último Mapa da Segurança Pública do Ministério da Justiça.
O ator Emílio Dantas, que vive Doca Street, reforça que o objetivo da série é recentrar a narrativa: “É deixar só o que importa para que a história da Ângela seja contada”.
Narrativa sem espetacularização
A produção evita reproduzir o crime de forma sensacionalista — decisão editorial citada pelo diretor. “A espetacularização a gente deixa para o sexto episódio”, afirma Waddington, referindo-se ao julgamento televisionado e ao uso das imagens reais do processo para reconstrução ficcional.
Para a produtora Renata Rezende, da Warner Bros. Discovery, esse enfoque é fundamental: “Se a gente espetacularizasse dando um protagonismo para o Doca, as discussões que estamos tendo agora seriam absolutamente outras. O propósito da série é acompanhar essa mulher e discutir a sociedade na qual estava inserida”.
Biografia de uma mulher punida por sua liberdade
Os arquivos recuperam ainda a trajetória de Ângela — mulher da elite mineira, culta, independente e frequentemente julgada por sua vida pessoal. Desde cedo reconhecida pela elegância e autonomia, foi alvo de criminalizações e vigilância moral, inclusive em casos policiais nos quais assumiu culpas que não eram suas, como no assassinato do caseiro José Avelino, cometido por seu então amante Tuca Mendes.
A minissérie ressalta como essa combinação de liberdade feminina, julgamentos morais e violência estrutural culminou no crime que marcaria para sempre o imaginário brasileiro — e que continua ecoando em debates contemporâneos sobre misoginia, violência doméstica e justiça de gênero.
Fonte: www.brasilcultura.com.br