Vítima do alcoolismo morreu aos 49 anos o craque bicampeão mundial e maior ponteiro-direito da história
Comparativo nem aqui nem nos outros planetas. Ninguém se iguala a ele; ninguém. Dentro das quatro linhas os Joões se estatelavam pelo gramado sem saber por onde ele passou. Sem a bola, também enganava como ninguém. A medicina esportiva o vetava por seus joelhos rombudos, as pernas de tamanhos diferentes e o estrabismo; o médico da seleção, Hilton Gosling, ao examiná-lo após a convocação para a Copa do Mundo de 1958 recomendou seu corte por aparente incapacidade física para a prática esportiva. Os psicólogos não o queriam em campo. Ele não era um ser igual aos outros. Foi uma aura em formato humano, desengonçado, mas criado a imagem e semelhança de Deus, do Deus Vivo que veio à Terra, com o nome de Jesus, morreu na cruz e ressuscitou.
O Brasil conquistou cinco taças da Copa do Mundo. Duas devem ser creditadas, sobretudo, a ele, nosso ponta-direita. Na Suécia, em 1958, formou o ataque campeão com Pelé, Vavá e Zagallo, tendo Zito e Didi num meio-campo impecável. Lá atrás, Gilmar: Djalma Santos, Orlando, Bellini e Nilton Santos. O maestro era o dorminhoco Vicente Feola. Naquela competição o mundo o conheceu. Os soviéticos ficaram encantados e, jornais europeus disseram que Moscou chegou a imaginar que ele fosse um robô criado pelos americanos. O rei anfitrião, Oscar Fredrik Wilhelm Olaf Gustaf Adolf, não teve o deslumbramento dos camaradas e embora o tenha visto malabarista ousado da bola, o refugou por sua petulância ao passar a mão-boba em sua bunda real diante de milhares de estupefatos súditos.
Em ritmo de alegria, como se estivesse à beira do gramado o brasileiro cantou pelos salões do país, no carnaval de 1959, a marchinha de Wilson Batista, Jorge Castro e Nóbrega, com o refrão abaixo..
/ Não é só café que nós temos pra vender /Dribla, dribla Mané para o mundo inteiro ver /
No Chile, quatro anos depois da Suécia, nosso ataque ganhou Amarildo no lugar de Pelé, contundido. O meio-campo foi o mesmo. Gilmar; Djalma Santos, Mauro, Zózimo e Nilton Santos neutralizavam os gringos. O treinador Aymoré Moreira não tinha dificuldade para escalar o time que o Brasil inteiro queria. Ele, sempre sem igual, foi o nome da Copa de 1962. O Brasil tremeu no rádio, na semifinal contra o Chile, por sua expulsão após dar um pontapé em Rojas. A pancadaria levava o jogador a reações intempestivas. Quando deixava o campo foi atingido na cabeça por uma pedrada. O jeitinho brasileiro o manteve na finalíssima contra a Espanha. De volta cruzamos os Andes com a faixa de bicampeões.O Brasil estava aos seus pés, mas o rádio tocava o sucesso de Sérgio Malta interpretado por Noite Ilustrada:
/ Reaja mostre que é um campeão /Volte pra casa abrace as crianças e peça perdão /
Essa heresia musical pedia a ele para terminar seu romance com a cantora Elza Soares e regressar ao antigo lar. A hipocrisia da tradicional família brasileira sabia a letra de cor e a entoava a todos os pulmões.
Alegria do Povo e Anjo das Pernas Tortas. Comentaristas esportivos o chamavam assim. A crônica somente não dizia que as excursões do Botafogo de Futebol e Regatas, seu clube, tinham duas bolsas: uma pequena, sem ele; e outra, rechonchuda com sua presença em campo. Seus joelhos não suportavam mais, e para mantê-lo aceso vestindo a camisa 7, os médicos lhe aplicavam injeções que anestesiavam suas dores. E tome dribles desconcertantes que levavam até a torcida adversária ao delírio, pois o brasileiro vai ao estádio para sorrir, gritar, abraçar, desabafar, ser feliz no país que, como bem o definiu Nelson Rodrigues, é a Pátria de Chuteiras.
Driblou, driblou até não poder mais. Seu gingado era um balé sobre cravos da chuteira. Alguns dribles eram curtos, outros longos, e não faltavam aqueles do ilusionismo que fazia a bola sumir. Pobres Jõoes. Pelo rádio o torcedor distante do estádio imaginava como deveriam ser aqueles lances, que tempos depois chegariam ao Brasil inteiro pelo Canal 100 em preto e branco – igual a camisa dele no Botafogo – e com o fundo musical orquestrado. Gravações das partidas eram exibidas antes dos filmes com lances captados por ângulos que em nada deviam às grandes produções hollywoodianas.
Cada vez mais cachaça e idade, e menos pique para enfeitiçar o mundo com sua arte dentro das quatro linhas onde fazia coisas que até Deus duvidava. Virou alcóolatra. Em 20 de janeiro de 1983, aos 49 anos, numa clínica no Rio de Janeiro, fechou os olhos para sempre na Terra para reabri-los somente diante de Deus.
Menino pobre, de família pobre, ele nasceu em Pau Grande, no distrito da Vila Inhomirim, município de Magé, na região metropolitana do Rio de Janeiro. A data de seu primeiro choro desafia seus biógrafos. Para alguns foi em 18 de outubro de 1933; para outros, no dia 28 daquele mês e ano. Ninguém sabe ao certo porque esse mistério foi apenas mais um drible dado por ele, o que reforça a argumentação do psicólogo da seleção em 1958, Paulo Carvalhaes, que à princípio não o queria no time de Feola.Seu sepultamento aconteceu em Raiz da Serra, distrito de Magé, mas nem a morte lhe permitiu paz na terra. Seu corpo sumiu e o cemitério não sabe para onde o levaram.
Ao contrário dos grandes ídolos do esporte, apresentados por seus números e disciplina esportiva, ele era figura do povo: nem herói nem anti-herói. Apenas um desengonçado driblador, que com seus lances levava o povo ao delírio, independentemente do placar.
No seu ciclo em campo Mato Grosso não tinha futebol profissional que o levasse a disputar jogos no centro geodésico do continente. Porém, após o encerramento de sua carreira, numa excursão nacional para mostrar sua arte, ele disputou uma partida amadora no antigo Estádio Engenheiro Luthero Lopes, em Rondonópolis, e deixou sua marca nas redes da equipe anfitriã.
Descanse em paz. Não somente seu corpo desapareceu. A Taça Jules Rimet, que seu bailado ajudou a conquistar, também foi levada para lugar incerto e não sabido.Sem ele temos um futebol para consumo, que intercala alegrias e tristezas, mas nada que se compare ao que fazia Manoel Francisco dos Santos, o Mané Garrincha, o Garrincha, que reagrupou no céu os velhos companheiros da Canarinho, para delírio do Senhor Deus, que descansa no sétimo dia os vendo jogar como nos velhos e bons tempos em que ele em campo fazia travessuras com a bola, que agora o anfitrião Deus não mais duvida.
Fonte: diariodecuiaba.com.br