A responsabilidade da universidade no Brasil

A responsabilidade da universidade no Brasil
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Quais os riscos à liberdade acadêmica que este segundo turno das eleições apresenta? Como as universidades públicas vão lidar com novos ataques de governantes e de uma cultura da intolerância que se enraíza? Até o momento, a universidade tem sido menos atingida, em termos relativos, que a imprensa, que órgãos de Estado e que grupos étnicos, talvez pelo prestígio que a pandemia trouxe à pesquisa ou por sua vida um pouco à parte da sociedade

No momento em que a luta pela democracia se acirrar, entretanto, essa reclusão não vai servir de biombo para ataques renovados. Apesar de avanços inegáveis no que diz respeito à diversidade étnica e social, falta à universidade uma cultura verdadeiramente democrática, aberta à sociedade brasileira e ao mundo, tolerante à diversidade de opiniões. Com a exceção de alguns bolsões de excelência, particularmente nas ciências, falta a ela a prática cotidiana do embate de ideias, da curiosidade e experimentação e dos laços com o mundo acadêmico global.

A universidade teve todo o período democrático para adensar suas relações com a sociedade, modernizando currículos e estabelecendo parcerias. Em geral, optou-se por reforçar a cultura corporativa, impedir projetos transformadores e excluir vozes divergentes. A política serviu de pretexto para esse silenciamento institucional da diversidade acadêmica, intelectual e pedagógica, sustentado de fato pela endogenia das contratações. Nada comparável à ameaça de hoje, que emerge de governos e culturas de extrema direita, tenhamos isso claro.

O problema desta intolerância normalizada é que não criamos antídotos para ataques autoritários. Numa conta grosseira, temos mais de meio milhão de estudantes, apenas da graduação, formados pelas três universidades estaduais paulistas (USP, Unesp e Unicamp) desde a autonomia universitária de 1989. Imaginem essas pessoas todas, valorizando a imprensa livre, o diálogo racional, a tolerância à diferença, a ampla curiosidade científica, a ousadia artística, a comparação com experiências internacionais, o questionamento livre, espalhando valores humanistas em seus cotidianos profissionais, familiares, públicos e religiosos. Esse contingente teria minado a cultura excludente que estamos vendo crescer.

A prática corporativista do cerceamento à livre expressão, que é comum em nossos campi, nos coloca desprotegidos diante de um ataque à democracia muito mais incisivo. Afinal, com que argumentos defender liberdades que foram cozinhadas em banho-maria por tanto tempo? Como desenhar espaços de discussão que acolham novas vozes, se muitas delas agora serão antiliberais? Como bradar pela ciência, se tantas vezes nos afundamos em dogmas? De que modo incluir agora a sociedade em nossas decisões, se ela pode numa tacada se voltar contra o próprio projeto científico? A abertura acadêmica deveria ter sido feita em tempos de democracias gordas. Agora é tempo de resistência e construir tais laços exigirá muito mais trabalho.

Tal resistência, é verdade, poderá vir do próprio estamento universitário, das malhas burocráticas que confundem até o ditador mais ensandecido. Essa é uma resistência de Pirro, pois vai significar concessões e exclusões, como aconteceu durante a ditadura militar. As instituições se protegeram, mas as pessoas (professores e alunos) ficaram à mercê do regime e o saber se restringiu. Já com a Nova República, a universidade pública se acomodou diante de sucessivos governos comprometidos com a liberdade e a democracia.

A universidade não se deu conta de seu papel construtor de uma cultura democrática e liberal – e popular, num país com as desigualdades que enfrentamos – e ocupou um papel subsidiário e reivindicatório na ordem nacional, evocando mais a resistência a movimentos da sociedade, sejam econômicos, culturais ou políticos, do que propondo a colaboração com ela. Fake news, por exemplo, há onde há notícias, desde sua origem no alvorecer da era moderna. Mas o engajamento com a notícia, com os próprios meios de comunicação e com a lógica da argumentação poderia sobrepujá-las. A demora das universidades públicas – menor em São Paulo, é fato – para adotar o ensino online durante a pandemia foi um sintoma desta recusa em se engajar com a sociedade e seu tempo, engajamento que, eu tenho certeza, cada professor universitário brasileiro deseja em seu íntimo!

Agora, dependendo do resultado das eleições nacionais e estaduais, particularmente em São Paulo, ela poderá entrar na mira de uma sanha fascista que vai tirá-la do equilíbrio malemolente produzido pelo suave abafamento de divergências. Talvez ela veja possíveis vitórias do campo democrático como uma validação de seu modus operandi, empurrando qualquer transformação para o Dia de São Nunca. Ou, pensando com otimismo, quem sabe a universidade pública veja o desafio atual como seu, seja na sala de aula, nas pesquisas, nas formas de gestão, na relação com a sociedade ou na colaboração internacional.

O Brasil espera e precisa que a universidade irradie para o conjunto da sociedade ideias e práticas democráticas a partir do ensino superior. É urgente nos darmos conta dessa responsabilidade

Fonte:  msn.com


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