“Levada à delegacia, a cantora, sincerona, explicou que, embora fosse usuária de drogas, não portava aquela maconha”
Gauche na vida, Rita Lee transformou sua despedida nos palcos numa espécie de protesto contra o sistema. Ao se apresentar no festival Verão Sergipe, em Aracaju (SE), na noite de 28 de janeiro de 2012, a cantora se invocou com policiais militares que, de modo truculento, revistavam o público. Havia denúncias de tráfico e consumo de maconha no local.
“Isso é força brutal. Vocês não têm o direito de usar força na meninada que não está fazendo nada. Esse show é minha despedida do palco”, esbravejou a artista, no microfone. “Eu sou do tempo da ditadura. Você pensa que tenho medo, porra?!”, emendou, chamando os policiais de “filhos da puta”, “cachorros” e “cafajestes”.
A lembrança do regime militar (1964-1985) não era mera retórica de Rita Lee, “a rainha do rock brasileiro”, que morreu nesta terça-feira (10). Em declaração à Folha de S.Paulo, o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, advogado de mais de 500 presos e perseguidos pela ditadura, lembrou que Rita também foi sua “cliente política” nos anos de chumbo. E uma cliente diferenciada: “Com sua música maravilhosa, ela enfrentou corajosamente a ditadura”.
Levantamento de Norma Lima, doutora em literatura e professora da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), aponta que pelo menos 15 músicas da cantora e compositora paulista foram censuradas. É o caso dos hits Cor de Rosa Choque, Lança Perfume e Papai, Me Empresta o Carro. Além disso, topo o disco Bombom foi barrado pelo regime dos generais-ditadores, que se chocava com versos como “Me faz de gato e sapato / e me deixa de quatro no ato”.
“Ser uma mulher livre fez com que Rita Lee fosse a mulher mais censurada da ditadura”, analisa Norma, que pesquisa há mais de 309 anos a obra da cantora. “Ela era um espírito livre – e esse comportamento era um contraste com o que se esperava da mulher nos anos 60 a 80.”
A celeuma mais célebre entre a cantora e os milicos ocorreu na manhã de 24 de agosto de 1976. Grávida de seu primeiro filho, Beto Lee, Rita estava em turnê com a banda Tutti Frutti quando agentes da repressão invadiram sua casa, na Rua Pelotas, na Vila Mariana. De acordo com o processo, eles teriam encontrado 300 gramas de maconha e um narguilé – o que Rita sempre negou.
Em Rita Lee – Uma Autobiografia (2016), a cantora diz que a cena policial em sua casa foi armada em represália a um enfrentamento seu à ditadura. Três dias antes, após um show no antigo teatro Aquarius, em São Paulo, uma fã de nome Nadir a procurou no camarim. Segundo Nadir, um homem havia sido morto durante outra apresentação da cantora, no bairro de Itaquera, também em São Paulo. A fã pediu que Rita fosse à delegacia para depor e ajudar a esclarecer as circunstâncias do homicídio.
Sem consultar advogado nenhum, Rita Lee decidiu tirar satisfação com o delegado. “Fiquei tocada com a história da mulher e topei. No dia seguinte, fui ao fórum e contei a cena”, registrou a cantora. “Mal sabia que estava metendo a colher no caldeirão corporativo da polícia paulista.”
Forjar cenas era um dos criminosos padrões policiais da época – e a tentativa de incriminar a cantora, uma das mais populares na década de 1970, aos 28 anos, não foi nada complexa. “Quatro deles chegaram de madrugada na rua Pelotas com uma ordem de busca, sem apresentar qualquer documento. ‘Viemos buscar o quilo de maconha que a Rita Lee guarda aqui’”, escreveu a artista.
Levada à delegacia, a cantora, sincerona, explicou que, embora fosse usuária de drogas, não portava aquela maconha. “Me botaram sentada frente ao delegado e sobre a mesa dele uma pilha de cannabis já dixavadinha, pronta para enrolar. Erva de ótima qualidade, aliás. ‘A senhora tem algo a dizer sobre isto aqui que meus homens encontraram na sua residência?’. ‘Isso não é meu, seu delegado. Estou grávida e no momento não uso drogas. Nem Coca-Cola, pro senhor ter uma ideia. Eu vi quando seus homens colocaram isso na minha casa, pode perguntar para minha madrinha, que também estava lá”.
De nada adiantou. A ditadura, disposta a puni-la de modo exemplar, prendeu Rita – primeiro no Deic (Departamento Estadual de Investigações Criminais), depois no presídio feminino do Hipódromo. Quando ela ainda estava no Deic, a cantora Elis Regina foi visitá-la, acompanhada do filho, o menino João Marcello Bôscoli, de 6 anos.
Rita rememorou esse encontro em 2020, durante uma live com o cantor Ronnie Von:“O carcereiro falou: ‘Ô, Ovelha Negra, tem uma cantora famosa rodando a baiana, dizendo que vai chamar a imprensa. Ela quer te ver’. Fiquei esperando, não sei, uma Nossa Senhora do Rock, e, de repente, vejo a Elis com o João Marcelo. Ela soltou a mão do filho e me deu um abraço. Perguntou como eu estava, disse que eu estava muito magra. Aí começou a falar duro com os policiais: ‘O que vocês estão fazendo com ela?’. O que ela berrou, o que ela aprontou lá dentro… E você pensa que os caras falavam alguma coisa? Não falavam nada. Ela baixinha cobrando: ‘Eu quero um médico já. Se não vier já, eu chamo a imprensa’. Ninguém mexia com a Elis. Ela era do Olimpo. Que mãezona! Mandou que comprassem comida para mim, deu dinheiro e ainda pediu troco (risos). Ela me ajudou como se fosse uma amiga de infância.”
A visita de Elis também é contada na autobiografia de Rita: “Elis não representava uma person of interest da ditadura, ao contrário, era reconhecida como a rainha do Olimpo musical e nenhum generaleco se atreveria a mexer com ela. Ficou lá de plantão até eu ser medicada e o sangramento estancado. Ainda mandou vir comidinha de um restaurante porque me achou magrela demais para uma grávida”.
Já no Hipódromo, Rita teve alento com a recepção de outras detentas, que lhe pediam que “cantasse umas musiquinhas”. Foi um show especial, segundo a artista. “Empunhei o violão e mandei Ovelha Negra com direito ao bis do bis. O inferno de Dante cantando em uníssono ‘Baby, baby, não adianta chamar’ merecia um Oscar de melhor musical”, brincou.
Três meses depois do episódio, já em casa, Rita Lee reportou ao jornal O Globo que foi completamente abatida pela tristeza na prisão. “Se eu não estivesse grávida, acho que não suportaria. Ele me deu muita força naquele momento de desespero”, pontuou Rita. Uma vez solta, ela foi condenada a um ano de prisão domiciliar e a multa de 50 salários mínimos, além de ter de se submeter a exames toxicológicos antes dos shows. Ao voltar aos palcos, usou uma roupa listrada, que lembra a de uma presidiária. Era Rita sendo Rita, rindo de si mesma e do sistema.
No julgamento – qualificado como “histórico” por José Carlos Dias –, a farsa da polícia foi desmontada. “O tribunal teve uma posição muito corajosa ao absolvê-la, entendendo que a invasão da casa dela era mais grave que os restos de maconha de existência nunca comprovada”, recordou o advogado.
No mesmo ano de 1976, a DCDP (Divisão de Censura de Diversões Públicas), um dos órgãos censores da ditadura, proibiu um show de Rita no Ginásio de Esportes do Colégio Marista, em Brasília. A cantora só se apresentaria na capital federal em 1983, no Estádio Pelezão.
Diante de 20 mil pessoas, Rita Lee desabafou: “Finalmente, depois de oito anos exilada da cidade, estou de volta e venho propor minha candidatura. Sou candidata a levar alegria ao povo, que está de saco cheio desses militares que comandam o país. Para a censura eu digo, é proibido proibir”