MÚSICA É CULTURA: “Síntese do Brasil”: a grandeza de Elza Soares

MÚSICA É CULTURA: “Síntese do Brasil”: a grandeza de Elza Soares
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Especialistas e músicos ouvidos pela DW Brasil analisam a trajetória e o legado cultural deixado pela artista que morreu na última quinta-feira, aos 91 anos

Na noite de quarta-feira (19/01), a produtora musical Dani Godoy foi jantar com seu pai, o pianista Amilton Godoy, fundador do grupo Zimbo Trio e diretor do Centro Livre de Aprendizagem Musical (Clam). Era uma noite de celebração.

“Ela estava feliz, comemorando o fim do trabalho: as gravações feitas pela Elza Soares aqui no Teatro Municipal [de São Paulo]. Já não estava fácil para Elza [por causa da idade avançada], mas minha filha conta que ela desempenhou tudo muito bem”, diz Amilton Godoy.

morte da artista, na quinta (20/01), deixou um vácuo na cultura brasileira. “Ela impressionava. Tinha um balanço, um suingue, uma afinação e um timbre maravilhosos, esbanjava talento, originalidade e muita criatividade”, avalia o músico, enfatizando que essa qualidade pôde ser percebida até o último momento, até o último trabalho. “No palco, tinha domínio total. Deixou uma marca maravilhosa na nossa história, na história da música brasileira.”

Tal admiração é compartilhada por músicos dos mais diversos gêneros. O compositor Livio Tragtenberg, ex-professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e criador da Orquestra de Músico das Ruas de São Paulo, lembra que a importância de Elza começa pelo fato de ela ter estabelecido uma ponte entre o samba dos anos 1950 e as gerações futuras, “do pessoal do hip hop à própria música eletrônica de pista”.

“Ela conseguiu fazer um diálogo sem abrir mão das tradições e do repertório, tudo com a importante vocalidade dela”, pontua ele. “É uma figura central na música popular brasileira, que atravessou os estilos musicais.”

Amigo de Elza desde os anos 1960, o músico e apresentador de TV Ronnie Von lembra de conversas nas quais ele comparava o estilo dela com o de grandes divas do jazz e do blues — e Elza rebatia que nunca havia ouvido esses estilos, porque “era do morro, subia e descia o morro com lata d’água na cabeça”.

“Todas as interpretações musicais que ela deixou, isso jamais será preenchido por nenhuma cantora”, enaltece Ronnie. “Elzinha era absolutamente única, dessas cantoras que levam na voz toda a força de uma raça contida, amargurada, segregada. E assim foi com ela, sei disso como seu amigo.”

Uma das maiores de todos os tempos

O músico e produtor musical Márcio de Camillo lembra que Elza Soares já demonstrou a que veio desde o início da carreira, nos anos 1950, “misturando jazz com samba com uma interpretação maravilhosa”. “E terminou [mais recentemente] misturando soul com funk com jazz com samba, tornando-se uma das mais importantes artistas brasileiras de todos os tempos”, comenta Camillo.

Para o especialista em cultura brasileira Fernando Pereira, professor e pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Elza Soares representa “a síntese do Brasil”. “O Brasil social, o Brasil cultural e o Brasil musical”, acrescenta ele.

“Do Brasil social porque era uma mulher negra, pobre, que passou por todas as dificuldades e deu a volta por cima. Do Brasil cultural porque materializou o que é o país em termos de cultura, uma cultura inclusive nos últimos anos solapada e destruída, mas ela segurou as pontas e mostrou ao público o que era a cultura na essência”, diz Pereira.

“Por fim, Elza é síntese da MPB porque aos 91 anos de idade nunca ficou parada no tempo. Passeou por todos os estilos, os gêneros”, prossegue. O professor destaca que ela começou no samba, mas inventando “um jeito diferente” de cantá-lo, “adiantando ou atrasando a tônica dentro de cada nota musical da melodia”.

E prosseguiu, misturando samba com jazz, com rock, com hip hop, com rap. “E, ultimamente, com funk e música eletrônica”, pontua.

Reconhecida em vida

Para o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo (USP) e consultor da cátedra Kaapora: da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), a incomum trajetória de superação pessoal de Elza, associada ao seu imenso talento, transformou-a em um “mito vivo”.

“Quando a Mocidade Independente [de Padre Miguel, escola de samba carioca] a homenageou com o samba-enredo em 2020, o título foi ‘Elza Deusa Soares’. E é bem isso”, comenta ele, destacando o fato de a artista ter ganho pleno reconhecimento ainda em vida.

O jornalista e pesquisador musical Renato Vieira concorda com este ponto. “A carreira de Elza é um milagre porque no país que despreza o negro, ela conseguiu uma coisa muito bonita que geralmente artistas não conseguem: as flores em vida”, ressalta.

“Nesse sentido, a carreira foi muito vitoriosa. Ela foi embora, deixou os discos. E as flores foram dadas em vida. Partindo dessa experiência, fica essa mensagem: a gente tem de dar flores em vida par quem é da geração dela e ainda está aí”, acrescenta ele.

O pesquisador atenta ainda para um fato interessante: Elza Soares é um raro exemplo de artista que começou gravando no formato das 78 rotações e, passando por toda a evolução das plataformas, terminou lançando obras nos meios digitais. “Isso é para poucos. É para quem tem o que dizer”, diz o pesquisador.

Fonte:       dw.com


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