Países produtores criticam lei antidesmatamento da UE

Países produtores criticam lei antidesmatamento da UE
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Norma europeia proibirá importação, a partir do final de 2024, de commodities oriundas de áreas de mata recém-derrubadas. Mas falta de diálogo e de critérios claros motivaram 17 países a enviarem carta a Bruxelas

Carne de vaca é um dos principais itens de exportação do Brasil afetados pelo regulamento

A ideia parecia boa e conquistou o apoio de ambientalistas europeus e brasileiros. Para combater o desmatamento de florestas tropicais, a União Europeia (UE) deveria proibir a importação de produtos oriundos de áreas de mata recém-derrubadas. Assim foi feito, e em junho o bloco europeu aprovou sua norma antidesmatamento, que entra em vigor no final de 2024.

Mas a forma como essa regulação foi elaborada e os critérios para sua implementação vêm provocando insatisfação nos países com florestas, entre os quais o Brasil se destaca.

Em 7 de setembro, uma carta assinada por 17 países produtores foi enviada à UE expressando preocupações com o “caráter punitivo e discriminatório” da norma. Assinam o documento, além do Brasil, Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa do Marfim, Equador, Gana, Guatemala, Honduras, Indonésia, Malásia, México, Nigéria, Paraguai, Peru, República Dominicana e Tailândia.

O texto pede que o bloco europeu dialogue mais com os países produtores para evitar “rupturas” e “ônus excessivo” na aplicação da nova norma, e aponta risco de a regra excluir os pequenos produtores do acesso ao mercado europeu, pois teriam mais dificuldade para cumprir com todos os novos requisitos.

A norma europeia veta a exportação para a UE de cacau, café, soja, óleo de palma, madeira, carne bovina e borracha, assim como de produtos derivados como couro, papel, chocolate e carvão vegetal, cultivados em áreas desmatadas após dezembro de 2020. Também é necessário cumprir legislações relevantes sobre direitos humanos, trabalhistas, fundiários e de comunidades indígenas.

A regra é mais rigorosa do que as normativas nacionais. No Brasil, por exemplo, o Código Florestal permite que proprietários de terras na Amazônia Legal desmatem legalmente até 20% da área para fins produtivos.

A norma europeia acabou se entrelaçando com o debate sobre o acordo de livre comércio entre a UE e o Mercosul, cujo texto inicial foi fechado em 2019, mas segue em negociação e não entrou em vigor. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva entende que a aprovação do regulamento antidesmatamento da UE alterou o equilíbrio dos termos que já haviam sido acordados para o tratado de livre comércio.

As críticas à normativa europeia apareceram com frequência em um ciclo de debates sobre a Amazônia organizado pela embaixada brasileira em Berlim nesta semana, que contou com a participação da secretária nacional de mudança do clima do Ministério do Meio Ambiente, Ana Toni, e da secretária de políticas e programas estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia, Marcia Barbosa. Entenda algumas das reclamações.

Falta de diálogo

A primeira crítica usualmente feita à norma europeia é que ela foi elaborada para regular o comércio entre países do bloco e países produtores de commodities sem que houvesse uma negociação prévia com as nações afetadas, que agora se veem obrigadas a seguir os parâmetros estabelecidos em Bruxelas.

“A questão não é ‘o quê’, mas ‘como’. O Brasil nem outro país quer produtos que venham do desmatamento. Mas como a norma foi desenhada, sem diálogo, (…) de cima pra baixo, é um problema”, disse Toni em Berlim.

“Somos a favor da rastreabilidade [dos produtos]. Mas temos que definir como, qual vai ser o modelo, as datas e de onde vai sair o dinheiro para isso. É um pouquinho colonialista vir dizer de fora para dentro o que a gente tem que fazer”, completou Barbosa.

O embaixador brasileiro na Alemanha, Roberto Jaguaribe, também entende que a norma da UE seria contrária às regras internacionais de comércio. “Para o tratamento de medidas dessa natureza, a unilateralidade não é a forma adequada”, disse.

Norma proíbe importação de produtos oriundos de áreas desmatadas após dezembro de 2020Foto: Leo Correa/AP/picture alliance

Essa crítica não é feita apenas por brasileiros e outros países produtores. Jan Börner, professor de economia do uso sustentável da terra e bioeconomia da Universidade de Bonn, na Alemanha, ressalta à DW que a UE fez uma consulta pública para ouvir opiniões de interessados, “mas não houve um diálogo com os países [afetados] no nível diplomático sobre o processo”.

Qual sistema de rastreamento será aceito

A comprovação de que os produtos provêm de áreas não desmatadas após 2020 depende da adoção de sistemas de rastreamento de uso da terra e atestados de devida diligência, mas a norma da UE não especifica quais sistemas e atestados deverão ser apresentados.

Caberá ao comprador da UE ter a segurança de que os documentos que acompanham o produto comprovem que ele adere às normas, e a fiscalização ficará a cargo das autoridades de cada país do bloco europeu, que poderão aplicar critérios diferentes. Segundo críticos da norma, isso gera insegurança jurídica e possível aumento de custos.

Além disso, alguns especialistas preveem que a norma provocará uma competição no mercado de serviços de rastreamento e de devida diligência, e que há risco de as soluções nacionais perderem espaço diante das exigências dos compradores europeus.

“O sistema de due diligence é obrigação da Europa, mas será alimentado quase que 100% por informações de fora da Europa. Qual documento, qual sistema de rastreamento, esse debate terá que ser feito com a inciativa privada, entre as partes. E, se deixar que o europeu paute que tipo de documento teremos que oferecer, será uma loucura”, disse o advogado Bruno Galvão, do escritório Blomstein, em Berlim, durante o evento na embaixada.

Toni, do Ministério do Meio Ambiente, ressaltou que a norma da UE deixa em aberto “qual é a ciência que vai falar se o sistema de rastreabilidade é seguro ou não”, e que há o risco de desvalorizar os sistemas públicos de monitoramento no Brasil. “A gente preferia que fosse uma norma que valorizasse a ciência brasileira, que é de ponta na área de mudança de usos da terra e monitoramento do desmatamento.”

Börner, da Universidade de Bonn, também menciona que esses critérios não foram bem definidos na norma europeia. “O Brasil tem um sistema de monitoramento público que durante muitos anos foi o mais avançado que existia no mundo tropical, e não está claro qual nível de precisão vai ser aceito pela UE”, diz.

Exclusão ou engajamento?

Outro ponto criticado sobre a norma é que ela priorizaria uma perspectiva de comando e exclusão, a partir da definição de quais produtores teriam ou não acesso ao mercado europeu, em vez de uma abordagem colaborativa para identificar e apoiar ações de controle do desmatamento – como a feita por meio do Fundo Amazônia.

Galvão destacou que o regulamento prevê que a UE se engaje em programas de cooperação, mas que caberá aos governos e à iniciativa privada de países com florestas tropicais pressionar Bruxelas a participar mais de soluções para o desmatamento que não se restrinjam à exclusão de determinados produtores

Modelo da norma

Börner, da Universidade de Bonn, também vê um problema de concepção da norma, que engaja apenas um dos mercados consumidores e não passa por um acordo com outros grandes compradores, como a China e os Estados Unidos.

No caso do Brasil, diz, os produtos mais afetados são a soja e a carne de vaca, e o percentual desses dois itens exportado para a UE é pequeno em relação ao total da produção brasileira, de modo que seria relativamente fácil para o país cumprir a demanda europeia sem que a norma tenha efeito notável na redução do desmatamento.

Um possível dano colateral, diz, é a regra levar a UE a comprar mais soja e carne de gado das regiões mais ao sul do Brasil, distantes da fronteira de desmatamento, o que resultaria em mais emissão de gás carbônico durante o transporte, já que esses produtos serão embarcados mais longe da Europa. Enquanto isso, diz, a oferta do norte do Brasil seguirá tendo compradores interessados, como a China.

“Minha principal crítica é a forma como essa norma é aplicada isoladamente na União Europeia. Sem conversar com os afetados e com os outros compradores, a probabilidade dela reduzir o desmatamento é pequena”, diz Börner.

Para ele, haveria dois modelos mais efetivos para contribuir para o combate ao desmatamento: incluir no preço dos produtos os seus custos reais ambientais, que seriam pagos por quem os consome, e investir em mecanismos nacionais de combate ao desmatamento nos países onde há florestas. “O Brasil tem mostrado que é possível, com os instrumentos e a legislação existente, reduzir o desmatamento“, diz.

A norma europeia, no entanto, foi em grande parte discutida quando o Brasil era presidido por Jair Bolsonaro, que desmobilizou o aparelho público de combate ao desmate.

ONGs brasileiras apontam ainda que, ao incluir a Amazônia e excluir o Cerrado de seu escopo, a norma pode criar incentivos para aumentar a devastação do Cerrado.

E daqui pra frente?

A norma europeia antidesmatamento já foi aprovada, e não há sinais de que o bloco europeu esteja disposto a alterá-la no momento. Está prevista uma revisão do regulamento daqui a dois anos.

Até o início da implementação da norma, no final de 2024, Galvão vê espaço para que o Brasil, como outros países produtores, pressionem para que a UE faça uma abordagem regionalizada em cada nação. A norma estipula que o rigor das exigências acompanhará o risco de desmatamento em cada nação, mas permite que essa classificação de risco seja feita por região, diferenciando áreas dentro de um mesmo país.

Börner, que em seu trabalho de pesquisa vem conversando com produtores brasileiros e autoridades da UE, afirma que a carta assinada pelos 17 países produtores pode servir de pressão para que haja um período de transição maior, no qual a fiscalização por parte dos países europeus seria feita com mais tolerância enquanto os critérios de aplicação ainda não estão claros e os produtores se adequam às regras.

Fonte:  dw.com


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